Quando eu
tinha uns 8 ou 9 anos, saía de casa para a escola numa manhã fria do inverno
gaúcho. Chegando à portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou qual.
“O moletom
amarelo, da Zugos”, respondi. Era mentira. Não estava levando agasalho nenhum,
mas estava com pressa, não queria me atrasar.
Voltei do
colégio e fui ao armário procurar o tal moletom. Não estava lá, nem em nenhum
lugar da casa. Gelei. À noite, meu pai chegou em casa de cara amarrada. Ao me
ver, tirou da pasta de trabalho o moletom. E me disse: “Eu não me importo que
tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família, ninguém mente. Ponto. Tá
claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi apenas um episódio mais memorável de algo
que foi o leitmotiv da minha formação familiar.
Meu pai era
um obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade, honestidade, código de
conduta, escala de valores, menschkeit (firmeza de caráter, decência
fundamental, em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e exaustivamente
martelados na minha cabeça.
Deu certo.
Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto deslocado.
Até hoje
chego pontualmente aos meus compromissos, e na maioria das vezes fico esperando
por interlocutores que se atrasam e nem se desculpam (quinze minutos parece
constituir uma “margem de erro” tolerável). Até hoje acredito quando um
prestador de serviço promete entregar o trabalho em uma data, apenas para ficar
exasperado pelo seu atraso, “veja bem”, “imprevistos acontecem” etc.
Fico
revoltado sempre que pego um táxi em cidade que não conheço e o motorista tenta
me roubar. Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole, que arranjam um
jeitinho de fazer menos que o devido. Tenho cada vez menos visitado escolas
públicas, porque não suporto mais ver professores e diretores tratando alunos
como estorvos que devem ser controlados.
Isso sem
falar nas quase úlceras que me surgem ao ler o noticiário e saber que entre os
governantes viceja um grupo de imorais que roubam com criatividade e
desfaçatez.
Sócrates,
via Platão (A República, Livro IX), defende que o homem que pratica o mal é o
mais infeliz e escravizado de todos, pois está em conflito interno, em
desarmonia consigo mesmo, perenemente acossado e paralisado por medos, remorsos
e apetites incontroláveis, tendo uma existência desprezível, para sempre
amarrado a alguém (sua própria consciência!) onisciente que o condena.
Com o devido
respeito ao filósofo de Atenas, nesse caso acredito que ele foi excessivamente
otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais perto da compreensão da
perversidade humana ao notar, nos ensaios reunidos no livro Responsabilidade e
Julgamento, que esse desconforto interior do “pecador” pressupõe um diálogo
interno, de cada pessoa com a sua consciência, que na verdade não ocorre com a
frequência desejada por Sócrates. Escreve ela: “Tenho certeza de que os maiores
males que conhecemos não se devem àquele que tem de confrontar-se consigo mesmo
de novo, e cuja maldição é não poder esquecer. Os maiores malfeitores são
aqueles que não se lembram porque nunca pensaram na questão”. E, para aqueles
que cometem o mal em uma escala menor e o confrontam, Arendt relembra Kant, que
sabia que “o desprezo por si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a
si próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação era que o homem pode
mentir para si mesmo”.
Todo
corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica para os seus atos, algo
que justifique o porquê de uma determinada lei dever se aplicar a todos,
sempre, mas não a ele(a), ou pelo menos não naquele momento em que está cometendo
o seu delito.
Cai por
terra, assim, um dos poucos consolos das pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos
eu durmo tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem dramas de
consciência, se travassem um diálogo verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou
não teriam optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado. Esse diálogo
consigo mesmo é fruto do que Freud chamou de superego: seguimos um
comportamento moral porque ele nos foi inculcado por nossos pais, e renegá-lo
seria correr o risco da perda do amor paterno.
Na minha
visão, só existem, assim, dois cenários em que é objetivamente melhor ser ético
do que não. O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita que os
pecados deste mundo serão punidos no próximo. Não é o meu caso. O segundo é se
você vive em uma sociedade ética em que os desvios de comportamento são punidos
pela coletividade, quer na forma de sanções penais, quer na forma do ostracismo
social. O que não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse ou não a
frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é um país sério.
Assim é que,
criando filhos brasileiros morando no Brasil, estou às voltas com um deprimente
dilema. Acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho para a vida. Essa
é a nossa responsabilidade: dar a nossos filhos os instrumentos para que
naveguem, com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo real. E
acredito que a ética e a honestidade são valores axiomáticos, inquestionáveis.
Eis aí o
dilema: será que o melhor que poderia fazer para preparar meus filhos para
viver no Brasil seria não aprisioná-los na cela da consciência, do diálogo
consigo mesmos, da preocupação com a integridade? Tenho certeza de que nunca
chegaria a ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia, como pai,
simplesmente ser mais omisso quanto a essas questões. Tolerar algumas mentiras,
não me importar com atrasos, não insistir para que não colem na escola, não
instruir para que devolvam o troco recebido a mais...
Tenho
pensado bastante sobre isso ultimamente. Simplesmente o fato de pensar a
respeito, e de viver em um país em que existe um dilema entre o ensino da ética
e o bom exercício da paternidade, já é causa para tristeza. Em última análise,
decidi dar a meus filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não porque
ache que eles serão mais felizes assim - pelo contrário -, nem porque acredite
que, no fim, o bem compensa. Mas sim porque, em primeiro lugar, não conseguiria
conviver comigo mesmo, e com a memória de meu pai, se criasse meus filhos para
serem pessoas do tipo que ele me ensinou a desprezar. E, segundo, tentando um
esboço de resposta mais lógica, porque sociedades e culturas mudam.
Muitos dos
países hoje desenvolvidos e honestos eram antros de corrupção e sordidez 100
anos atrás. Um dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a retidão que
espero inculcar em meus filhos (e meus filhos em seus filhos) há de ser uma
vantagem, e não um fardo. Oxalá.
Autor: Gustavo Loschpe,
publicado originalmente em Link
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